A intenção da Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária (Sesp) de amenizar a superlotação de determinadas unidades prisionais, atender decisões da Justiça e remanejar grupos faccionados reacendeu uma disputa entre facções criminosos no Paraná. As medidas, que segundo o Departamento Penitenciário (Depen) não passam de “estudos”, causaram choque de presos rivais. O temor causou a consolidação de uma nova coligação de facções. Os integrantes têm chamado de “É Tudo Dois”. São faccionados da Máfia Paranaense – da chamada oposição ao Primeiro Comando da Capital (PCC) – com o Primeiro Grupamento Catarinense (PGC) e alguns poucos integrantes do Comando Vermelho, quase extinto no Estado. O Bem Paraná ouviu agentes penitenciários que, sob a condição de anonimato, relataram o que têm visto nas prisões.
“Tudo Dois”, que na origem é um gíria e que virou um título, é a forma que os presos da oposição encontraram para sobreviver ao PCC, que tem pelo menos 600 membros apenas na Penitenciária Estadual de Piraquara I (PEP I), na região metropolitana de Curitiba, e domina a maioria dos presídios do Paraná. Ainda que reúna facções diversas, a coligação não consegue contrapor a gigante paulista que surgiu no Paraná em meados da década de 1980.
O foco da crise atual estaria na superlotação de unidades e na possibilidade de transferência de integrantes da chamada Máfia Paranaense, que surgiu após presos do “seguro”, que são jurados de morte, se unirem para contrapor ao predomínio do PCC a partir de 2014. O governo também tenta conter a proliferação da “nova facção”.
A transferência de integrantes da máfia, que surgiu em Curitiba, para outras unidades criou novos focos do bando. O fenômeno é semelhante ao que ocorreu com o PCC, que de São Paulo se espalhou por todo o País após transferências.
Presos do Paraná estão enviando “recados” ao governo para evitar que as facções rivais sejam reunidas. A Casa de Custódia de São José dos Pinhais (CCSJP), na região metropolitana, que tem predomínio de integrantes do PCC, pode receber detentos vindos da Penitenciária Estadual de Ponta Grossa (PEPG). Esses presos são na maioria da Máfia Paranaense. O governo chegou a cogitar levá-los de volta para a Casa de Custódia de Curitiba (CCC), na Cidade Industrial, onde a Máfia surgiu. O problema é que a CCC agora está ocupada e superlotada por presos do “Seguro” que cumprem pena por crimes sexuais, contra crianças ou feminicídio, além de presos famosos, como Edison Brittes, réu que confessou ter matado o jogador Daniel Correa Freitas.
A vinda para Curitiba de faccionados, sejam eles do PCC, máfia ou qualquer outra, na situação em que a unidade se encontra (com presos demais e funcionários de menos) poderia causar uma “carnificina”.
Um agente penitenciário, que pediu para não ser identificado, remonta a crise atual ao surgimento da nova facção. “A política do Depen mudou desde o ano passado. A CCC, que tem estrutura, foi projetada para aguentar todo tipo de preso, está com ‘presos menos graves’. (Em 2014) colocaram lá presos do ‘seguro’ e que por ingerência do Estado se juntaram e criaram a Máfia Paranaense. Só tinha lá (a máfia). Eles (máfia) querem demonstrar poder para a mídia, como ocorreu naquela rebelião (em julho de 2018 na CCC) em que eles ficaram segurando um tempo (cinco dias) só para demonstrar força para o PCC”, explica.
Após a rebelião, com a ida de presos da “máfia” para Ponta Grossa, advogados entraram com pedidos para que os detentos voltem para região de Curitiba onde moram suas famílias. Além disso, autoridades da cidade dos Campos Gerais teriam se movimentando para “se livrar” dos faccionados. “O problema é que esses caras da Máfia Paranaense foram para a PEPG, ficaram lá um tempo, uns oito meses, e agora querem que eles voltem. A CCC não quer receber para não misturar com presos do seguro. Se mandar para São José só tem PCC. É pior”, avalia.
As transferências estariam marcadas para começar na última terça-feira (2), mas o Depen recuou após o alerta de segurança. Como a CCC está superlotada, o Depen teria cogitado levar parte dos detentos por crimes sexuais para São José para abrir espaço aos integrantes da ‘máfia’. Foi então, que na última segunda-feira, o Conselho da Comunidade, órgão de direitos humanos previsto na Lei de Execução Penal, emitiu seu alerta por considerar que a transferência de presos para São José, na cadeia dominada pelo PCC, poderia causar uma rebelião na unidade. Além disso, a hipótese ventilada pelo governo de transferi-los gerou uma série de outras reações.
A cadeia de Curitiba tem capacidade para 492 presos, mas na última semana, abrigava 740 detentos. “Familiares têm procurado o conselho para relatar o medo que tomou conta dos presos (do seguro, crimes sexuais e da oposição) na CCC. Eles temem ser mortos se forem para São José. Muitos alegam que estão jurados de morte pelo PCC. A transferência pode provocar rebeliões nas duas unidades”, afirma a advogada Isabel Kugler Mendes, presidente do conselho.
A CCSJP também não tem margem para novos presos. Hoje abriga 1050 detentos e tem capacidade para 850, segundo agentes penitenciários.
Em meio à crise das transferências, a direção da CCSJP foi trocada, assim como a vice-direção e a chefia de segurança da CCC. As mudanças teriam partido do secretário de Segurança, General Luiz Felipe Kraemer Carbonell. “O que ele quer é deixar só preso do seguro na CCC. Não vai dar certo. Isso (rebelião do PCC contra Tudo Dois) é iminente. Questão de tempo. O diretor (da SCJP) não aceitou a imposição do general e saiu da direção. Ele (secretário) quer deixar o Brittes na CCC, preso de crime contra mulher, criança e idosa”, critica outro agente.
“Ninguém quer esses caras da Máfia Paranaense e nem da oposição. É “Tudo Dois”, que foi uma coligação que levantaram, que também tem o PGC. São 25 homens do PGC hoje entre Ponta Grossa e nos shelters da CCC. Foram em 69 (Máfia Paranaense) para Ponta Grossa em agosto. Na rebelião tinha 140, mas 69 assinaram dizendo que eram da facção. O juiz de Ponto Grossa começou a determinar que voltassem para Curitiba. Depois de construiram os shelters (seis) na CCC mandaram uns 30 para lá. Monstrinho, Moretti (foi lider PCC e está em Ponta Grossa), Balzeki (Tudo Dois) estão na CCC. Cada shelter tem capacidade para 12, mas tem 15. No total tem 72. Estão até furando os shelter. Quem sobra dorme no chão, que eles chamam ‘dormir na praia’”, diz.
Ingerência teria criado e ampliado facção. Agora ‘É Tudo Dois’
Para agentes penitenciários que testemunharam o surgimento da facção criminosa Máfia Paranaense, o Estado do Paraná tem responsabilidade por ter criado ambiente ao fenômeno. Agora, o novo movimento do governo, mesmo que involuntariamente, estaria para impulsionar a coligação de facções. “Poderiam ter evitado, primeiro, garantindo segurança. Os presos só fizeram isso para sobreviver contra o PCC. Agora é a mesma coisa. E é uma praga. Quando o governo transfere presos por não ter estrutura em um lugar, ele cria um foco novo em outra cadeia. Agora, querem tirar de Ponta Grossa, mas não adianta. Sai um, outro toma o lugar. A facção continua, só que com um foco a mais”, analisa outro agente, que trabalhou na CCC e viu de perto o surgimento das novas facções.
A máfia teria surgido a partir de 2014, quando houve uma sequência de rebeliões na Penitenciária Estadual de Piraquara II (PEP2). “Teve três rebeliões. Surgiu um grupo lá, que eram “Os Corintianos, ou “Bando de Loko”, de oposição ao PCC, que estendeu uma faixa lá com esses nomes. Eles estavam em três blocos, eram 323 presos mais ou menos. O PCC estava em dois blocos, mas queria avançar contra os corinthianos. Uma ação do Depen resolveu mandar os líderes dos Corinthianos para a Casa de Custódia de Curitiba. Até então a CCC era só para crime contra mulher, criança, crime sexual. Levaram os presos sexuais para Piraquara e levaram 200 presos mais ou menos para a CCC”, remonta.
Os dissidentes dos corintianos, então, resolveram fundar uma facção, que conta com estatuto, mensalidade e institucionalização do crime. Assim nasceu a Máfia Paranaense, na Casa de Custódia de Curitiba.
“(Os líderes) eram Fortunato, Bill, que foi morto um pouco antes da rebelião (de 2018), Billy, o Sem Terra e o Captiva. Eles formaram a Máfia. Eram uns 60 presos só. A ‘caixinha’ (mensalidade) era 60 reais, que depositam em uma conta (banco informal). (Na cadeia) eles alugam cubículos, fazem o tráfico de drogas, controlam a caiçara (tabaco) que é moeda na cadeia. Um pacote de caiçara na cadeia vale 500 reais”, conta.
Se juntou à Máfia Paranaense o Primeiro Comando do Paraná (PCP), que foi fundado em 2000, por um dissidente do PCC apelidado de “Fortunato”, mas que está praticamente extinto. Na Casa de Custódia de Curitiba estariam hoje, entre 700 presos, cerca de 200 presos “Tudo Dois”. “A oposição são duzentos presos que não são de crime sexual, mas são dissidentes do PCC e estão lá tidos como oposição porque foram excluídos do PCC por conta, dívida e outras coisas”, afirma.
Contrapor a hegemonia do PCC, no entanto, ainda parece longe de ser viável. “O PCC quer acabar com a oposição. Os cara são maioria. Eles têm poder aquisitivo, agem do lado de fora, no Brasil. Têm liderança e têm estrutura. O MP (máfia) eram uns caras que fumavam pedra e são fracos. A máfia cobra 60 reais de mensalidade. O PCC cobra 260 reais e tem muito mais gente. Fazem rifa de carro. Vendem drogas, itens, sabonete e essas coisas de cadeia. Agora tem o problema do LCD, que é o adesivo. Custa 50 reais. A cocaína está 50 reais a buchinha. E estão usando o ‘Gatorade’ para matar os inimigos. É água e cocaína que mandam o cara tomar. Aí ele tem um AVC, morre e não parece que foi assassinado. Esses dias fizeram o Gatorade com cocaína vencida e não matou. O cara só passou mal, mas não morreu. Esse dias fizeram um arremesso e jogaram cinco celulares e até um computador lá para fazer um wi-fi”, diz.
O agente concorda que as transferências é uma das causas da proliferação de facções. “O PCC veio em 86 quando o Paraná mandou ‘uns ladrão de bicicleta’ para lá (São Paulo) e veio os 90 presos do PCC para cá. Em 89 fizeram a primeira rebelião, com dez mortos. Mandaram ‘uns ladrão de galinha pra lá’ e trouxeram os ‘cara cabuloso’ pra cá. Hoje somos em 36 (agentes penitenciários) ou 40 juntos na PCE, com 1,7 mil presos, maioria do PCC. Já pensou? Ninguém segura uma rebelião”, teme.
Os focos da Máfia Paranaense ainda seriam pequenos e a união a outras facções uma forma de sobreviver. “A máfia tá meio quebrada, porque muitos não estão contribuindo. Em Cascavel tem 12 (integrantes); Em Foz, na PEF 2 uns 10; na PCE tem uns 12 na cadeia que tem 1,7 mil presos. Na PEP 1, o PCC tem 660 pessoas. Nem todos são PCC mesmo, mas chamam de ‘companheiros’. São 460 PCC e 200 companheiros. Hoje o preso ou entra para a facção ou vai para a igreja”, conclui.
Depen afirma que estudo para transferências ocorre em todo o Paraná
Por meio de nota, o Depen afirma que as transferências não estão decididas. De acordo com a assessoria, “as informações disponibilizadas pelo Conselho da Comunidade não procedem” e não são oficiais. O órgão, no entanto, confirma que a possibilidade é cogitada. “Existe um estudo no Depen, em andamento, para analisar a possibilidade de retirada de presos considerados ‘seguro’ do interior da Casa de Custódia de Curitiba, tendo em vista que essa unidade foi projetada para abrigar presos que cometeram crimes sexuais”. O Depen afirma que esse estudo analisa o perfil de cada preso e acontece em todo o Paraná. “Ainda não está definido o local de destino desses presos, tendo em vista que se trata de um estudo”, afirma o Depen.